Política
Cirurgias canceladas, UTIs bloqueadas, desabastecimento generalizado e até morte de criança revelam a crise do sistema de saúde do Rio Grande do Norte. No Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) do 1º semestre de 2025 a explicação: Mesmo com arrecadação considerada bilionária e inédita, o Governo de Fátima Bezerra mantém um ritmo de execução orçamentária abaixo do necessário na área da Saúde.
O orçamento estadual para 2025 prevê uma dotação de R$ 3.100.013.000,00 para a Saúde, o que representa uma média mensal de R$ 258,3 milhões. No entanto, nos seis primeiros meses do ano, o governo aplicou apenas R$ 981.399.283,45, cerca de R$ 520 milhões a menos do que o valor proporcional previsto para o período, que deveria ultrapassar R$ 1,5 bilhão.
Os dados, extraídos do Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) do 1º semestre de 2025, divulgado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte (TCE-RN), revelam que, mesmo com disponibilidade orçamentária, a execução financeira na Saúde está em ritmo de contenção. Esse atraso compromete a qualidade e o alcance dos serviços oferecidos à população potiguar.
Nesse ritmo, o Governo do Estado fecha os seis primeiros meses pagando menos de 1/3 do que é previsto para o ano. Ou seja, orçamento bilionário, mas uma execução pífia, com previsão anual de R$ 3,1 bilhões e empenho de R$ 2,4 bilhões, o Governo liquidou R$ 1,89 bilhão, mas efetivamente pagou apenas R$ 947 milhões, pouco mais de 30% do total.
Ou seja, grande parte dos recursos anunciados pelo governo não se traduz em dinheiro chegando efetivamente aos fornecedores, hospitais e serviços de saúde. Há um descompasso entre empenho e pagamento.
A análise chama atenção para o descumprimento do limite mínimo constitucional, já que a Constituição e a Lei Complementar 141/2012 obrigam os estados a aplicarem 12% da Receita Corrente Líquida em saúde. Nesse caso, o relatório mostra que, no semestre, o governo não alcançou o percentual mínimo exigido e que há uma diferença registrada que deveria ter sido aplicada e não foi.
Acumulados de anos anteriores
Além disso, o Estado acumula R$ 92,8 milhões em déficits de anos anteriores, revelando um histórico de descumprimento dentro do exercício do financiamento da saúde. O documento mostra que grande parte da execução orçamentária depende de restos a pagar (empenhos antigos ainda não liquidados ou pagos).
Essa maquiagem fiscal mascara a real aplicação dos recursos, já que valores empenhados em exercícios anteriores continuam sem quitação. O relatório, inclusive, reconhece que há cancelamentos de restos de exercícios passados que nunca chegaram a ser pagos.
Enquanto isso a pressão sobre os hospitais cresce diariamente:
• Atenção Básica: previsão de R$ 4,2 milhões; pagos até junho, apenas R$ 177 mil.
• Assistência Hospitalar e Ambulatorial: previsão superior a R$ 1,5 bilhão; pagos até junho, só R$ 308 milhões.
• Vigilância Sanitária e Epidemiológica: execução baixíssima, com valores irrisórios frente ao orçamento.
• Alimentação e Nutrição: praticamente inexecutada.
Veja Tabelas ao Final da Reportagem
Enquanto os investimentos seguem em descompasso entre valores empenhados e efetivamente pagos, a população sente na pele.
O impacto dos números se traduz em dor de quem depense do SUS na rede pública estadual do Rio Grande do Norte. Nos últimos dias, o Hospital Deoclécio Marques, em Parnamirim, suspendeu 19 cirurgias ortopédicas por falta de material.
Familiares relataram caos: “Estava tudo pronto para a cirurgia e cancelaram porque não havia material. Estamos sem limpeza e até sem alimentação”, denunciou Milena Medeiros, acompanhante de um paciente internado.
No Hospital Maria Alice Fernandes, em Natal, a Justiça foi acionada após a desativação de leitos de UTI neonatal e pediátrica por falta de insumos e profissionais. O resultado foi trágico: o falecimento de uma criança no dia 7 de agosto, confirmado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremern), que atribuiu a morte à falta de leito disponível.
O Cremern instaurou sindicância e prometeu levar o caso à Justiça, destacando a “gravidade dos fatos”.
No maior pronto-socorro do Estado, o Hospital Walfredo Gurgel, o Sindicato dos Médicos e o Conselho Regional de Medicina anunciaram uma inspeção emergencial para verificar a falta de insumos e o risco de fechamento de setores.
O centro de queimados, por exemplo, tem uma obra paralisada há mais de um ano, o que coloca em risco a manutenção de recursos federais — cerca de R$ 2 milhões anuais que podem ser perdidos.
Relatório interno do Hospital João Machado revelou um desabastecimento crítico de itens básicos, como luvas, aventais, álcool, antibióticos e material de intubação.
A Comissão de Controle de Infecção recomendou inclusive o bloqueio temporário de leitos por falta de condições mínimas de segurança.
Indicadores de infecção hospitalar estão muito acima do aceitável: a taxa de infecção sanguínea chegou a 8,58, quase três vezes o limite. A higiene das mãos caiu para 19,5%, quando o ideal seria 85%.
Segundo o presidente do Sinmed - Sindicato dos Médicos do RN, Geraldo Ferreira, a crise não é pontual:
“Estamos vivendo um desabastecimento generalizado. Faltam desde lençóis até seringas, passando por medicamentos essenciais. Isso aumenta risco de infecção, prolonga internações e eleva a mortalidade dos pacientes.”
Governo admite falhas, mas não apresenta soluções
A Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap) reconheceu, em ofício encaminhado à imprensa há alguns dias, que o índice de abastecimento estava em apenas 73,5%, admitindo a falta de itens críticos. A pasta prometeu normalização “nos próximos dias”, mas não detalhou prazos nem garantias.
Enquanto isso a população sofre. Mais de 33 mil potiguares aguardam atualmente numa fila por cirurgias, para procedimentos que vão desde intervenções de menor complexidade, como pequenas cirurgias dermatológicas, até operações ortopédicas, oftalmológicas e vasculares de alto risco.
A situação não é nova. Em maio de 2023, a Sesap registrava mais de 27 mil pessoas na fila por cirurgias eletivas. Desde então, houve um aumento de cerca de 6 mil pacientes (22%), apesar do salto no número de procedimentos realizados. Isso evidencia que a demanda reprimida permanece.
As filas mais críticas concentram-se em cirurgias vasculares e urológicas. No caso da vascular, são 207 pacientes aguardando, mas a complexidade e gravidade dos casos tornam a situação especialmente delicada. Entre janeiro e junho deste ano, foram registradas 345 amputações no estado, muitas delas relacionadas a complicações do diabetes.
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