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Publicado em 10/06/2025, às 11h53 Dani Oliveira
Num país onde o preconceito se disfarça com sorrisos e elogios aparentemente inocentes, Octávio Santiago ousa desmontar o discurso oficial com lucidez, coragem e profundidade. Autor do livro "Só sei que foi assim", ele nos convida a olhar com mais atenção para as formas muitas vezes sutis — mas sempre estruturais — de exclusão que moldaram a forma como o Nordeste e os nordestinos são representados no imaginário nacional.
Nesta entrevista ao BNews Natal, Santiago parte de uma provocação incontornável — “O Brasil adora o Nordeste, mas detesta o nordestino” — para escancarar as engrenagens de um preconceito que não é acidental nem recente, mas parte de um projeto histórico de silenciamento e marginalização. Com referências sólidas, vivência pessoal e uma escrita afiada, o autor revela como o elogio pode carregar ofensa, como a exaltação cultural pode coexistir com a exclusão social, e como a construção de uma imagem fragilizada do Nordeste interessa a estruturas que insistem em manter o Brasil dividido.
Lançado primeiro em Natal, cidade natal do autor, e depois em São Paulo, o livro se insere com força no debate contemporâneo sobre identidade, memória e justiça simbólica. O que se segue é uma conversa profunda, crítica e necessária sobre o Brasil que fomos ensinados a enxergar — e o que precisamos reaprender a ver.
BNews Natal - você abre o livro com uma frase forte e provocadora: “O Brasil adora o Nordeste, mas detesta o nordestino.” Como essa frase traduz a essência do livro?
Octávio - A ideia surgiu do incômodo por não encontrar respostas satisfatórias. Por que certas frases são ditas e certos gestos acontecem? Por que há uma sensação de inadequação imposta? Com o tempo, percebi que esses incômodos não eram só meus. Eu sofri discriminação, mas com alguns familiares e amigos foi ainda pior. Alguns pesquisadores já vinham apontando a construção discursiva do Nordeste, autores como Francisco de Oliveira, Iná de Castro, Durval Muniz e Zaidam Filho foram fundamentais nesse processo de entendimento. Mas eu sentia falta de um mergulho mais direto nos estereótipos, no que foi repetido até se tornar verdade.
BNews Natal - Em que momento surgiu a ideia de escrever o livro?
Octávio - Porque ela carrega um julgamento de valor disfarçado de gentileza. Muito do que ouvimos, aliás, tem essa ideia de ser um pretenso elogio, mas são frases carregadas de xenofobia e até mesmo de racismo. E isso nos remete a escritos centenários, de quando fomos apresentados como um brasileiro de “molde único” e dialoga com a maneira como somos representados até hoje pelas produções culturais, sempre com o filtro do atraso, sempre ignorando nossas individualidades. Implica também que ser nordestino é algo menor, algo do qual se deve fugir. Como se não parecer nordestino fosse um prêmio, um alívio.
BNews Natal - O comentário “você não tem cara de nordestino” foi o estopim. Como essa frase, aparentemente inofensiva, revela algo tão profundo e estrutural?
Octávio - Desde os livros escolares até a forma como a mídia constrói narrativas. Até hoje o Nordeste não consta no imaginário nacional como produtor de ciência, de conhecimento, apesar de sermos. Pelo contrário: na nossa vitrine está sempre a escassez, a ausência, a fragilidade. Ao “nordestino de folhetim”, falta tudo, até mesmo a gramática. Nossa contribuição intelectual, política, artística, tudo isso é apagado ou minimizado. E isso não é por acaso, é intencional.
BNews Natal - Você fala em “apagamento intencional”. De que formas esse apagamento se manifestou historicamente?
Octávio - No livro, trago muitos exemplos, mas um episódio, em particular, ajuda a ilustrar esse processo: quando, na década de 1920, o governo federal finalmente voltou os olhos para os estados afetados pela seca, por iniciativa de um presidente paraibano, Epitácio Pessoa, o presidente seguinte, um mineiro, rapidamente desmontou os esforços, alegando que não éramos dignos daquele investimento nacional. O que se seguiu foi a redistribuição dos recursos para São Paulo e Minas Gerais, reforçando a lógica de concentração e exclusão. Esse movimento não foi pontual.
BNews Natal - O livro propõe que o preconceito regional é parte de um projeto de exclusão. Que pistas do presente e do passado te levaram a essa conclusão?
Octávio - Não é exatamente uma novidade na nossa história. Em 1930, por exemplo, o Brasil escolheu o samba e a feijoada como símbolos nacionais, e uma santa negra, Nossa Senhora Aparecida, foi proclamada padroeira do país. Mas, em paralelo, a Constituição de 1934 incorporava princípios eugênicos na educação, com o objetivo explícito de “higienizar” a população, de embranquecer. O que acontece hoje com o Nordeste é uma continuidade dessa lógica. O Brasil nos consome desde que embalados para o entretenimento, sem que isso ameace estruturas de poder. A cultura é aceita enquanto produto, mas o povo é rejeitado enquanto sujeito político. Há uma tentativa constante de manter o Nordeste como um território exótico, mas silencioso, submisso. A ideia de que somos “miscigenados demais” continua rondando. Ainda somos vistos como um corpo coletivo inferiorizado, incapaz de protagonismo.
Como explicar esse paradoxo brasileiro de consumir a estética do Nordeste — a música, o sotaque, as festas — e ao mesmo tempo rejeitar quem a produz?
• Você menciona a ideia de dois Brasis construída ao longo das décadas. Qual é o papel da mídia e da política na manutenção dessa visão distorcida?
A construção da ideia de dois Brasis, um próspero e outro marcado pela precariedade, foi sustentada, em grande parte, pela ação combinada da mídia e da política ao longo das décadas. Para que um Brasil fosse validado na sua imagem de progresso, era necessário que existisse outro Brasil, legitimado na carência e na fragilidade. Esse contraste não era apenas geográfico, mas simbólico. Durante muito tempo, o país era desintegrado em termos de infraestrutura: sem estradas, sem comunicação eficiente entre regiões. O que se sabia sobre o “outro Brasil” vinha, sobretudo, dos relatos de expedicionários e das narrativas midiáticas, que ocupavam o lugar da verdade. A mídia, nesse contexto, teve um papel central ao reforçar estereótipos e consolidar o discurso dos contrastes.
• O que mais te inquieta nesse contraste?
Acho que entendemos a nordestinidade de forma muito plural. Somos mais de 60 milhões de pessoas, com trajetórias, nuances e subjetividades diversas. No entanto, o Brasil ainda insiste em nos enxergar por uma lente viciada e reducionista. O curioso, porém, é que ao tentarmos nos defender, muitas vezes acabamos recorrendo a estereótipos já impostos: “somos cabras da peste mesmo”, por exemplo. Transformar o negativo em positivo não é um ato simples, é, na verdade, uma missão hercúlea. E o risco é justamente esse: ao ressignificar os estereótipos, podemos acabar reforçando o lugar onde fomos historicamente colocados.
• Que tipo de reação você espera do público ao ler o livro?
Espero que o livro ofereça mais munição para o enfrentamento do preconceito. Acredito que só com informação conseguimos, de fato, virar a página. Este livro se propõe a ser mais um contributo nesse processo, uma ferramenta para reflexão, consciência e mudança. Se ele conseguir, mesmo que minimamente, provocar esse movimento em alguém, já sentirei que valeu a pena.
• Há um esforço para “impedir o retorno” de nordestinos aos espaços de poder. Como romper essa barreira?
Não é uma tarefa fácil. Mas tudo passa pelo reconhecimento e visibilidade histórica, assim como pelo fortalecimento da educação e da formação política. Este livro tem a pretensão de colaborar com os debates e lançar luz sobre esses temas. Também é fundamental que reivindiquemos uma representatividade mais contundente, especialmente na forma como somos retratados, priorizando a produção e difusão de narrativas plurais e positivas. Assim, poderemos abrir caminhos para o combate direto ao preconceito e à discriminação.
• O livro será lançado em Natal e depois em São Paulo. O que representa para você lançar essa obra em sua terra?
Lançar o livro em Natal tem um significado especial. É afirmar que minha cidade, o Rio Grande do Norte e o Nordeste seguem como produtores de conhecimento e pensamento crítico. Muitas vezes, nos colocam apenas como cenário ou inspiração, mas estamos também no centro da produção do saber. Estamos aqui, pensando, escrevendo e propondo caminhos. E agora São Paulo vai nos ouvir.
• Você já tem planos para outras publicações ou desdobramentos desse projeto?
O esforço agora é para fazer com que o livro chegue a mais lugares e a mais pessoas: ampliar o alcance dessa conversa e ajudar a atualizar o lugar que o nordestino ocupa no imaginário nacional. Muitos pesquisadores vieram antes de mim, abrindo caminhos, e espero que muitos outros venham depois, atentos às nuances, às contradições. Quanto mais vozes estiverem pensando o Nordeste, melhor. Quanto mais leitores, mais chances temos de mudar essa visão. É um trabalho coletivo e contínuo.
• Que mensagem você gostaria que ficasse ecoando na cabeça do leitor após ler “Só sei que foi assim”?
Que tudo isso foi um projeto, que houve intenção, estratégia, e que não há inocência nesses gestos que nos colocaram à margem. Já passou da hora de vencermos essa narrativa secular e abrirmos, de vez, a caixa onde o nordestino foi colocado. Somos grandes, plurais e potentes demais para caber em qualquer estereótipo. O livro é um convite para romper com essas amarras e enxergar o Nordeste e os nordestinos em toda a sua complexidade. E potência, claro.
SERVIÇO
Lançamento do livro com sessão de autógrafos com Otávio Santiago
Dia 10 de junho, terça | 18h30
Shopping Midway - Livraria Leitura
Classificação Indicativa: Livre