Polícia

A pena é leve? Incentiva o crime? Advogados criticam projeto que equipara contrabando de cigarros ao tráfico de drogas

Advogados criminalistas do RN opinam sobre o Projeto de Lei 4495/24, de autoria do deputado federal Coronel Meira, que tramita no Congresso Nacional  |  No Rio Grande do Norte, quase 10 milhões de maços de cigarro foram apreendidos em menos de seis anos - PF

Publicado em 14/06/2025, às 22h00   No Rio Grande do Norte, quase 10 milhões de maços de cigarro foram apreendidos em menos de seis anos - PF   Anderson Barbosa

A pena para o contrabando de cigarros é branda, leve, insignificante? A atual legislação incentiva o crime, abre brechas para a reincidência? Quais os interesses por trás do Projeto de Lei 4495/24, de autoria do deputado federal Coronel Meira (PL/PE), que tramita no Congresso Nacional? Equiparar o contrabando de cigarros ao crime de tráfico de drogas é a melhor solução? Ou a verdadeira intenção é apenas beneficiar os grandes fabricantes de cigarro e seus derivados?

No Rio Grande do Norte, quase 10 milhões de maços de cigarro foram apreendidos em menos de seis anos, prejuízo milionário para os cofres do estado. Poucos foram presos. E os que foram, já estão soltos. 

A pedido do BNews Natal, advogados criminalistas falaram a respeito da polêmica e opinaram sobre as questões acima.   

O que diz o PL 4495/24 

De um modo geral, o crime de contrabando de cigarros é considerado negligível ou insignificante quando a quantidade apreendida não ultrapassa 1.000 maços. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outras instâncias judiciais têm se manifestado nesse sentido, aplicando o princípio da insignificância para casos de contrabando de cigarros em pequenas quantidades. Atualmente, a pena para contrabando de cigarros, segundo o artigo 334-A do Código Penal Brasileiro (importar ou exportar mercadoria proibida) é de reclusão de 2 a 5 anos. Além disso, há uma multa aduaneira de R$ 2 por maço de cigarro contrabandeado. 

Pelo texto do PL 4495/24, devem ser punidas com a mesma pena prevista para o tráfico de drogas – reclusão de 5 a 15 anos e multa – condutas como vender, comprar, produzir, transportar, distribuir e manter em depósito cigarros e derivados de tabaco contrabandeados, pirateados, falsificados, corrompidos ou adulterados, independentemente da quantidade. O projeto também prevê que sejam aplicadas as mesmas penas de outros crimes da Lei Antidrogas a condutas similares envolvendo cigarros e derivados de tabaco em situação irregular e sem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). 

Ainda segundo o texto, por exemplo, quem financia, colabora como informante ou se associa a produção, venda ou distribuição de cigarros e derivados em situação irregular poderá ser punido com as penas previstas para esses crimes envolvendo drogas ilícitas. 

Por fim, a proposta estabelece que os crimes relacionados ao comércio ilegal de cigarros sejam inafiançáveis e insuscetíveis de graça, indulto, anistia e liberdade provisória, sendo proibida ainda a conversão da prisão em penas mais leves (semiaberto, aberto, liberdade condicional). O texto também estabelece que o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e com bons antecedentes. 

O que dizem os advogados

Para Lailson Aguiar, advogado criminalista e vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RN, o Projeto de Lei 4.495/2024, ao propor a equiparação do contrabando de cigarros ao tráfico de drogas, adota uma resposta penal extrema que precisa ser cuidadosamente avaliada.

Distorção do princípio da proporcionalidade penal

"A intenção de endurecer o combate ao comércio ilegal de cigarros é compreensível, especialmente diante dos danos à saúde pública, à arrecadação tributária e ao controle de fronteiras. No entanto, tratar a comercialização irregular de tabaco com os mesmos rigores legais destinados ao tráfico de entorpecentes representa uma distorção do princípio da proporcionalidade penal". 

Advogado Lailson Aguiar

 

Ainda segundo Lailson, o contrabando de cigarros, embora grave, possui dinâmica distinta do tráfico de drogas, tanto em impacto social quanto em estrutura organizacional. "A proposta ignora essas diferenças e avança para um modelo de criminalização máxima, prevendo penas elevadas, vedação de benefícios processuais e execução antecipada da pena, mesmo para réus primários. É uma reação legislativa que parece priorizar o efeito simbólico sobre a efetividade prática", afirma. 

Penas de modo indiscriminado não resolvem a questão

O advogado disse também que combater o contrabando exige inteligência fiscal, atuação coordenada entre agências de controle e responsabilização econômica das cadeias envolvidas. "Ampliar penas de modo indiscriminado não resolve a questão e ainda pode comprometer a legitimidade do sistema penal. O desafio é frear a criminalidade, sim, mas sem abdicar dos fundamentos do Estado de Direito", pontuou. 

Equiparação incabível

O advogado criminalista Flaviano Gama, que também possui forte atuação no Rio Grande do Norte, pactua do mesmo pensamento. Para ele, "o PL 4495/24 amplia o conceito de tráfico de forma abrupta ao incluir cigarros contrabandeados, pirateados ou falsificados no mesmo rol de condenações já aplicadas a traficantes de drogas, ainda que suas atividades não envolvam substâncias psicoativas ilícitas ou qualquer modalidade de tráfico violento". 

Advogado Flaviano Gama

 

"Essa ampliação pode resultar em penas injustificadamente severas para condutas que, embora ilegais, não causam os mesmos danos à saúde pública ou à ordem social que o narcotráfico provoca. A essência do tráfico de drogas que temos hoje é completamente diferente da materialidade dos cigarros contrabandeados. Este último passa a ser legal com o pagamento do imposto. Já o tráfico de drogas que temos hoje, é impossível sua legalização. Assim, a equiparação técnica de ambas as situações é absolutamente incabível", fundamentou Flaviano. 

O advogado conclui:

Esse PL, em sua forma atual, se apresenta desproporcional, desestruturado e desconectado das reais necessidades regulatórias e de segurança pública do país".

 

O Poder Legislativo está sendo exercido de forma inadequada

Outro advogado criminalista de relevante atuação no estado é Arsênio Pimentel. Ele também concorda que o PL em discussão parece não ter funcionalidade para a sociedade. "Parece-me que o Poder Legislativo está sendo exercido de forma inadequada, de forma imprópria, porque ele quer legislar a respeito de algo que não vai ter nenhum efeito prático para o brasileiro, entendeu? Porque o efeito prático maior para o brasileiro era que fosse proibido o consumo de tabaco e que as pessoas parassem de fumar, se esse é realmente o intuito de proteger a saúde da coletividade. Por outro lado, se houver um intuito arrecadatório, então o caminho não é a proibição através de uma penalização maior, e sim a legalização da importação de cigarro com pagamento de imposto", destacou.

"Então, você traz um concorrente para a Souza Cruz, e parece-me que a decisão mais proporcional e mais adequada à realidade brasileira é legalizar o ingresso do cigarro importado no país, já que somos um país onde as drogas ilícitas declaradas por portaria do Ministério da Saúde podem ser consumidas sem ter repercussão de penalização, e o cigarro trazido, fabricado pela Souza Cruz, esse aí tá ok. Então, o governo ganharia muito mais se legalizasse o cigarro importado e todos os derivados, e o VAPE também. Ou seja, tudo quanto é mazela, o governo tributaria por cima para poder ter um benefício, pelo menos, de compensação do custo que o erário vai ter. Agora, de lascar é a Souza Cruz poder comercializar cigarro, e o traficante, que é uma atividade ilícita, poder vender o baseado dele e as demais substâncias entorpecentes que são fumadas, sem recolher imposto, sem nada", observou Arsênio.

Advogado Arsênio Pimentel

 

Aumentar a pena não vai ser a solução

"Então, eu vejo que o Legislativo está meio que perdido no intento, na finalidade legal que ele está querendo dar essa norma. Para mim, estão batendo cabeça. Eu acho que o caminho não é esse. Aumentar a pena não vai ser a solução, porque o efeito prático de aumentar a pena está aí. Não é transformando homicídio de mulher em feminicídio que você diminui  a morte de mulheres por homens. Não é aumentando as penas de tráfico de entorpecentes que você diminui a quantidade de tráfico. Não é aumentando a pena do assalto ou a pena do homicídio que você reduz. O meio é totalmente inadequado e é um desserviço à sociedade", acrescentou Arsênio Pimentel.

E o advogado completa: 

Estão jogando para a plateia. O efeito prático disso vai continuar do mesmo jeito. O contrabando vai continuar da mesma forma. Os males à saúde continuarão na mesma intensidade. O que teremos será uma maior segregação por um tempo maior daquelas pessoas que são envolvidas nessa prática, nesse delito. Não vai mudar nada, porque objetivo legislativo está completamente deturpado. Essa é a forma como eu entendo".

 

Criada para impressionar a sociedade, uma falácia

Fernandes Braga também é advogado criminalista conceituado. Para ele, o Projeto de Lei 4495/2024 não passa de "uma lei criada para impressionar a sociedade". E ele  explica: "É um Projeto de Lei para a galera, pra fazer um efeito visual junto à sociedade. Se for equiparado ao tráfico, muitas dessas condutas hoje vão ser tráfico privilegiado. A pena do tráfico é de 5 a 15 anos, mas o cara quando pega no privilégio, vai para 1 ano e 8 meses. Nem privativa de liberdade é. É restritiva de direitos", ponderou.

Advogado Fernandes Braga


"Com a equiparação, certamente, as pessoas que são responsabilizadas com penas que ultrapassam os cinco anos de prisão, pelo crime de contrabando de cigarros, irão ser beneficiadas pela figura do tráfico privilegiado. Um cidadão que foi preso contrabandeando cigarros, e este, devendo ser responsabilizado pela lei de drogas, pelo tráfico de drogas, deverá suportar uma pena de cinco anos com redutor penal de até 2/3. Em regra, deverá ter sua pena definitiva em patamar de até um ano e oito meses, sendo ainda, substituída pelo igual tempo de restrições de direitos, que diferencia da privação de liberdade. O presente PL é uma verdadeira falácia, joga um efeito inexistente para a sociedade como se o Estado estivesse pleno no combate a traficância", disparou Fernandes Braga.

Classificação Indicativa: Livre


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